Então Jó respondeu:
Como tens ajudado ao que não tem força e sustentado o braço que não tem vigor!
como tens aconselhado ao que não tem sabedoria, e plenamente tens revelado o verdadeiro conhecimento!
Para quem proferiste palavras? E de quem é o espírito que saiu de ti?
Os mortos tremem debaixo das águas, com os que ali habitam.
O Seol está nu perante Deus, e não há coberta para o Abadom.
Ele estende o norte sobre o vazio; suspende a terra sobre o nada.
Prende as águas em suas densas nuvens, e a nuvem não se rasga debaixo delas.
Encobre a face do seu trono, e sobre ele estende a sua nuvem.
Marcou um limite circular sobre a superfície das águas, onde a luz e as trevas se confinam.
As colunas do céu tremem, e se espantam da sua ameaça.
Com o seu poder fez sossegar o mar, e com o seu entendimento abateu a Raabe.
Pelo seu sopro ornou o céu; a sua mão traspassou a serpente veloz.
Eis que essas coisas são apenas as orlas dos seus caminhos; e quão pequeno é o sussurro que dele, ouvimos! Mas o trovão do seu poder, quem o poderá entender?
E prosseguindo Jó em seu discurso, disse:
Vive Deus, que me tirou o direito, e o Todo-Poderoso, que me amargurou a alma;
enquanto em mim houver alento, e o sopro de Deus no meu nariz,
não falarão os meus lábios iniqüidade, nem a minha língua pronunciará engano.
Longe de mim que eu vos dê razão; até que eu morra, nunca apartarei de mim a minha integridade.
ë minha justiça me apegarei e não a largarei; o meu coração não reprova dia algum da minha vida.
Seja como o ímpio o meu inimigo, e como o perverso aquele que se levantar contra mim.
Pois qual é a esperança do ímpio, quando Deus o cortar, quando Deus lhe arrebatar a alma?
Acaso Deus lhe ouvirá o clamor, sobrevindo-lhe a tribulação?
Deleitar-se-á no Todo-Poderoso, ou invocará a Deus em todo o tempo?
Ensinar-vos-ei acerca do poder de Deus, e não vos encobrirei o que está com o Todo-Poderoso.
Eis que todos vós já vistes isso; por que, pois, vos entregais completamente ã vaidade?
Esta é da parte de Deus a porção do ímpio, e a herança que os opressores recebem do Todo-Poderoso:
Se os seus filhos se multiplicarem, será para a espada; e a sua prole não se fartará de pão.
Os que ficarem dele, pela peste serão sepultados, e as suas viúvas não chorarão.
Embora amontoe prata como pó, e acumule vestes como barro,
ele as pode acumular, mas o justo as vestirá, e o inocente repartirá a prata.
A casa que ele edifica é como a teia da aranha, e como a cabana que o guarda faz.
Rico se deita, mas não o fará mais; abre os seus olhos, e já se foi a sua riqueza.
Pavores o alcançam como um dilúvio; de noite o arrebata a tempestade.
O vento oriental leva-o, e ele se vai; sim, varre-o com ímpeto do seu lugar:
Pois atira contra ele, e não o poupa, e ele foge precipitadamente do seu poder.
Bate palmas contra ele, e assobia contra ele do seu lugar.
Na verdade, há minas donde se extrai a prata, e também lugar onde se refina o ouro:
O ferro tira-se da terra, e da pedra se funde o cobre.
Os homens põem termo Abrem um poço de mina longe do lugar onde habitam; são esquecidos pelos viajantes, ficando pendentes longe dos homens, e oscilam de um lado para o outro.
Quanto ã terra, dela procede o pão, mas por baixo é revolvida como por fogo.
As suas pedras são o lugar de safiras, e têm pó de ouro.
A ave de rapina não conhece essa vereda, e não a viram os olhos do falcão.
Nunca a pisaram feras altivas, nem o feroz leão passou por ela.
O homem estende a mão contra a pederneira, e revolve os montes desde as suas raízes.
Corta canais nas pedras, e os seus olhos descobrem todas as coisas preciosas.
Ele tapa os veios d’água para que não gotejem; e tira para a luz o que estava escondido.
Mas onde se achará a sabedoria? E onde está o lugar do entendimento?
O homem não lhe conhece o caminho; nem se acha ela na terra dos viventes.
O abismo diz: Não está em mim; e o mar diz: Ela não está comigo.
Não pode ser comprada com ouro fino, nem a peso de prata se trocará.
Nem se pode avaliar em ouro fino de Ofir, nem em pedras preciosas de berilo, ou safira.
Com ela não se pode comparar o ouro ou o vidro; nem se trocara por jóias de ouro fino.
Não se fará menção de coral nem de cristal; porque a aquisição da sabedoria é melhor que a das pérolas.
Não se lhe igualará o topázio da Etiópia, nem se pode comprar por ouro puro.
Donde, pois, vem a sabedoria? Onde está o lugar do entendimento?
Está encoberta aos olhos de todo vivente, e oculta O Abadom e a morte dizem: Ouvimos com os nossos ouvidos um rumor dela.
Deus entende o seu caminho, e ele sabe o seu lugar.
Porque ele perscruta até as extremidades da terra, sim, ele vê tudo o que há debaixo do céu.
Quando regulou o peso do vento, e fixou a medida das águas;
quando prescreveu leis para a chuva e caminho para o relâmpago dos trovões;
então viu a sabedoria e a manifestou; estabeleceu-a, e também a esquadrinhou.
E disse ao homem: Eis que o temor do Senhor é a sabedoria, e o apartar-se do mal é o entendimento.
E prosseguindo Jó no seu discurso, disse:
Ah! quem me dera ser como eu fui nos meses do passado, como nos dias em que Deus me guardava;
quando a sua lâmpada luzia sobre o minha cabeça, e eu com a sua luz caminhava através das trevas;
como era nos dias do meu vigor, quando o íntimo favor de Deus estava sobre a minha tenda;
quando o Todo-Poderoso ainda estava comigo, e os meus filhos em redor de mim;
quando os meus passos eram banhados em leite, e a rocha me deitava ribeiros de azeite!
Quando eu saía para a porta da cidade, e na praça preparava a minha cadeira,
os moços me viam e se escondiam, e os idosos se levantavam e se punham em pé;
os príncipes continham as suas palavras, e punham a mão sobre a sua boca;
a voz dos nobres emudecia, e a língua se lhes pegava ao paladar.
Pois, ouvindo-me algum ouvido, me tinha por bem-aventurado; e vendo-me algum olho, dava testemunho de mim;
porque eu livrava o miserável que clamava, e o órfão que não tinha quem o socorresse.
A bênção do que estava a perecer vinha sobre mim, e eu fazia rejubilar-se o coração da viúva.
vestia-me da retidão, e ela se vestia de mim; como manto e diadema era a minha justiça.
Fazia-me olhos para o cego, e pés para o coxo;
dos necessitados era pai, e a causa do que me era desconhecido examinava com diligência.
E quebrava os caninos do perverso, e arrancava-lhe a presa dentre os dentes.
Então dizia eu: No meu ninho expirarei, e multiplicarei os meus dias como a areia;
as minhas raízes se estendem até as águas, e o orvalho fica a noite toda sobre os meus ramos;
a minha honra se renova em mim, e o meu arco se revigora na minhã mão.
A mim me ouviam e esperavam, e em silêncio atendiam ao meu conselho.
Depois de eu falar, nada replicavam, e minha palavra destilava sobre eles;
esperavam-me como ã chuva; e abriam a sua boca como ã chuva tardia.
Eu lhes sorria quando não tinham confiança; e não desprezavam a luz do meu rosto;
eu lhes escolhia o caminho, assentava-me como chefe, e habitava como rei entre as suas tropas, como aquele que consola os aflitos.
Mas agora zombam de mim os de menos idade do que eu, cujos pais teria eu desdenhado de pôr com os cães do meu rebanho.
Pois de que me serviria a força das suas mãos, homens nos quais já pereceu o vigor?
De míngua e fome emagrecem; andam roendo pelo deserto, lugar de ruínas e desolação.
Apanham malvas junto aos arbustos, e o seu mantimento são as raízes dos zimbros.
São expulsos do meio dos homens, que gritam atrás deles, como atrás de um ladrão.
Têm que habitar nos desfiladeiros sombrios, nas cavernas da terra e dos penhascos.
Bramam entre os arbustos, ajuntam-se debaixo das urtigas.
São filhos de insensatos, filhos de gente sem nome; da terra foram enxotados.
Mas agora vim a ser a sua canção, e lhes sirvo de provérbio.
Eles me abominam, afastam-se de mim, e no meu rosto não se privam de cuspir.
Porquanto Deus desatou a minha corda e me humilhou, eles sacudiram de si o freio perante o meu rosto.
ë direita levanta-se gente vil; empurram os meus pés, e contra mim erigem os seus caminhos de destruição.
Estragam a minha vereda, promovem a minha calamidade; não há quem os detenha.
Vêm como por uma grande brecha, por entre as ruínas se precipitam.
Sobrevieram-me pavores; é perseguida a minha honra como pelo vento; e como nuvem passou a minha felicidade.
E agora dentro de mim se derrama a minha alma; os dias da aflição se apoderaram de mim.
De noite me são traspassados os ossos, e o mal que me corrói não descansa.
Pela violência do mal está desfigurada a minha veste; como a gola da minha túnica, me aperta.
Ele me lançou na lama, e fiquei semelhante ao pó e ã cinza.
Clamo a ti, e não me respondes; ponho-me em pé, e não atentas para mim.
Tornas-te cruel para comigo; com a força da tua mão me persegues.
Levantas-me sobre o vento, fazes-me cavalgar sobre ele, e dissolves-me na tempestade.
Pois eu sei que me levarás ã morte, e ã casa do ajuntamento destinada a todos os viventes.
Contudo não estende a mão quem está a cair? ou não clama por socorro na sua calamidade?
Não chorava eu sobre aquele que estava aflito? ou não se angustiava a minha alma pelo necessitado?
Todavia aguardando eu o bem, eis que me veio o mal, e esperando eu a luz, veio a escuridão.
As minhas entranhas fervem e não descansam; os dias da aflição me surpreenderam.
Denegrido ando, mas não do sol; levanto-me na congregação, e clamo por socorro.
Tornei-me irmão dos chacais, e companheiro dos avestruzes.
A minha pele enegrece e se me cai, e os meus ossos estão queimados do calor.
Pelo que se tornou em pranto a minha harpa, e a minha flauta em voz dos que choram.
Fiz pacto com os meus olhos; como, pois, os fixaria numa virgem?
Pois que porção teria eu de Deus lá de cima, e que herança do Todo-Poderoso lá do alto?
Não é a destruição para o perverso, e o desastre para os obradores da iniqüidade?
Não vê ele os meus caminhos, e não conta todos os meus passos?
Se eu tenho andado com falsidade, e se o meu pé se tem apressado após o engano
(pese-me Deus em balanças fiéis, e conheça a minha integridade);
se os meus passos se têm desviado do caminho, e se o meu coraçao tem seguido os meus olhos, e se qualquer mancha se tem pegado então semeie eu e outro coma, e seja arrancado o produto do meu campo.
Se o meu coração se deixou seduzir por causa duma mulher, ou se eu tenho armado traição ã porta do meu próximo,
então moa minha mulher para outro, e outros se encurvem sobre ela.
Pois isso seria um crime infame; sim, isso seria uma iniqüidade para ser punida pelos juízes;
porque seria fogo que consome até Abadom, e desarraigaria toda a minha renda.
Se desprezei o direito do meu servo ou da minha serva, quando eles pleitearam comigo,
então que faria eu quando Deus se levantasse? E quando ele me viesse inquirir, que lhe responderia?
Aquele que me formou no ventre não o fez também a meu servo? E não foi um que nos plasmou na madre?
Se tenho negado aos pobres o que desejavam, ou feito desfalecer os olhos da viúva,
ou se tenho comido sozinho o meu bocado, e não tem comido dele o órfão também
(pois desde a minha mocidade o órfão cresceu comigo como com seu pai, e a viúva, tenho-a guiado desde o ventre de minha mãe);
se tenho visto alguém perecer por falta de roupa, ou o necessitado não ter com que se cobrir;
se os seus lombos não me abençoaram, se ele não se aquentava com os velos dos meus cordeiros;
se levantei a minha mão contra o órfao, porque na porta via a minha ajuda;
então caia do ombro a minha espádua, e separe-se o meu braço da sua juntura.
Pois a calamidade vinda de Deus seria para mim um horror, e eu não poderia suportar a sua majestade.
Se do ouro fiz a minha esperança, ou disse ao ouro fino: Tu és a minha confiança;
se me regozijei por ser grande a minha riqueza, e por ter a minha mão alcança o muito;
se olhei para o sol, quando resplandecia, ou para a lua, quando ela caminhava em esplendor,
e o meu coração se deixou enganar em oculto, e a minha boca beijou a minha mão;
isso também seria uma iniqüidade para ser punida pelos juízes; pois assim teria negado a Deus que está lá em cima.
Se me regozijei com a ruína do que me tem ódio, e se exultei quando o mal lhe sobreveio
(mas eu não deixei pecar a minha boca, pedindo com imprecação a sua morte);
se as pessoas da minha tenda não disseram: Quem há que não se tenha saciado com carne provida por ele?
O estrangeiro não passava a noite na rua; mas eu abria as minhas portas ao viandante;
se, como Adão, encobri as minhas transgressões, ocultando a minha iniqüidade no meu seio,
porque tinha medo da grande multidão, e o desprezo das famílias me aterrorizava, de modo que me calei, e não saí da porta…
Ah! quem me dera um que me ouvisse! Eis a minha defesa, que me responda o Todo-Poderoso! Oxalá tivesse eu a acusação escrita pelo meu adversário!
Por certo eu a levaria sobre o ombro, sobre mim a ataria como coroa.
Eu lhe daria conta dos meus passos; como príncipe me chegaria a ele
Se a minha terra clamar contra mim, e se os seus sulcos juntamente chorarem;
se comi os seus frutos sem dinheiro, ou se fiz que morressem os seus donos;
por trigo me produza cardos, e por cevada joio. Acabaram-se as palavras de Jó.